Ser mané é (versão fúnebre):
Fui comunicado de manhã que tia Tereza havia falecido. Uma pena, uma enorme pena. Não era tia na verdade, era irmã da madrinha de Seu Carlos, mas que adotou Vicente e Leonardo como sobrinhos de fato, assim como a madrinha de Seu Carlos, uma senhora absolutamente querida e figuraça, que nos adotou, ainda crianças, como netos.
Tia Tereza morava perto da universidade onde estudei e sempre passava em sua casa, onde ela me entupia de maçãs. Ela sabia que gostava de maçãs, sempre tinha na geladeria. Sempre que podia, passava lá pra fazer uma social.
Passou o tempo, saí do Rio, voltei, voltei a estudar na universidade fazendo mestrado e sempre que rolava, esticava até a casa de Tia Tereza. Ela já estava por volta dos 80 anos, mas era esperta, sagaz, inteira. Fiquei surpreso quando fui informado que estava internada e depois que havia falecido.
O mínio a ser feito seria ir ao seu enterro. Comuniquei no trabalho a necessidade de sair cedo e parti, de metrô, rumo a Inhaúma. Havia me esquecido, aquele cemitério não tem capelas, os velórios são feitos do lado de fora e depois os cortejos partem para o funeral.
Liguei para Dona Glória que me informou apenas que era capela 4. Ok, mas de onde? Lá foi Vicente passando, absolutamente sem graça, de velório em velório... Quando era 15h50 achei o lugar onde ocorrera a, digamos, despedia de Tia Tereza. O problema é que o cortejo já havia partido. Ah, tia Tereza.... me dando um ziguinau justo na hora do seu enterro...
Olhei pra rua, vi um cortejo bem a frente, algumas centenas de metros a minha frente. Para completar, uma bela chuva caí sobre a cidade. Lá foi Vicente saltitando para superar as incontáveis poças de água e algumas correntezas que desciam a rua como pequenos rios. Correr? Nem pensar, vai que era o cortejo errado. Como eu explicar minha ânsia em chegar ali se fosse o morto equivocado?
Fui com passos largos, o cortejo entrou no cemitério, instantes depois lá fui eu. Já dentro da necrópole, olhei, busquei, nada. Pra me complicar, eu só conhecia o marido de Tia Tereza, que não estava visível em lugar algum. Fui até a administração e perguntei sobre o enterro. A senhora que me atendeu disse que estaria acontecendo naquele momento. Mas depois me avisou que ainda não tinha chegado.
Caía uma chuva fraca, mas capaz de molhar todo um sujeito. Eu, de camisa clara e óculos de sol ia caminhando, discretamente entre grupinhos, pra descobrir se tia Tereza estava em algum daqueles ataúdes. Nada também.
Não diria que bateu um desespero, mas uma sensação de incompetência. O calor era tanto que quando a água caía sobre aquele monte de concreto, na rua, nos bancos, nos túmulos, começava a evaporar. A umidade era enorme, fazendo com que a sensação de calor parecesse maior e o suor continuasse descendo pelam minha testa. Sair para ir a um enterro e não estar no funeral é muito esquisito. Já estava propenso a caminha pelo cemitério quando a senhorinha que me atendeu na administração foi atrás de mim com um papel, estava anotado o “endereço” do túmulo. E me indicou dizendo: “pega essa rua até o fim, depois dobra a esquerda que você acha”.
Vazei. Forçando o passo lá fui eu. Túmulos, túmulos, mais túmulos dos meus lados e aquele pouco encorajador céu cinza sob a cabeça. Terminei a rua indicada e virei à esquerda. A senhorinha também me entregara um papelzinho com o “endereço”. Fui olhando, olhando, um enterro mais à frente. Nenhum dos rostos era conhecido. O féretro já estava sendo conduzido ao túmulo. Vi e fui me aproximando enquanto pessoas que nunca me viram na vida foram me olhando com alguma desconfiança. Também pudera, o que um sujeito com dreadinhos e faixa colorida no cabelo estaria fazendo no enterro daquela senhora.
A antiga empregada da falecida madrinha do meu pai, uma negona retinta com cara de má chamada Clarice, me passou os olhos e me encontrou. Há mais de dez anos ela não me via, mas me reconheceu. Era mesmo aquele funeral onde eu já me enfiava. Cheguei a tempo da última oração para tia Tereza, o esforço não foi em vão.