Preto, pobre e suburbano

Esse aqui é o cotidiano de um simples jornalista carioca que mora e circula pra cima e pra baixo na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Mas acaba sempre voltando pra a base, em Bangu - terra onde só os fortes sobrevivem pq é longe pra burro e tem que ter saco pra aturar as idas e vindas...

terça-feira, março 22, 2005

Eu ia postar sobre as constantes pessoas pedindo dinheiro, moedas, ajuda pra comprar remédio, pra comprar comida, a última foi uma senhora q pedia ajuda pra juntar 32 reais pra visitar o irmão q teria sido recém-operado em Cabo Frio. Aí, diante dessa miséria, arreguei. Vi a coluna do Arnaldo Jabor, resolvi copiar e colar. Não tenho o q comentar sobre ela, só registrar aqui no PPS o q ela tem a dizer.

A miséria está fora de moda
A miséria armada está nos fazendo esquecer da miséria indefesa. Com a onda de violência, estamos perdendo a compaixão pelos pobres. E como ninguém sabe como resolver o drama da miséria, criamos um vago rancor contra ela, um certo tédio, porque ela não some, teima em reaparecer. Houve uma época em que a miséria nos tocava mais, ela era útil para nossa piedade, mesmo como tema para arte e literatura. A miséria sempre deu lucro. No Brasil, miséria é quase uma indústria. Quanto lucro uma igreja de charlatões tem com os dízimos? A miséria dá lucro político; falar na miséria denota preocupação humanitária, traz votos populistas.

Antes, havia uma miséria “boa”, controlável. Tínhamos pena, desde que ela ficasse no seu lugar, ela aplacava nossa consciência. Nos sonhos “revolucionários” dos pequenos-burgueses, a miséria era nossa bandeira. Sofríamos com ela. A miséria dos outros era nosso problema existencial. Achávamos que nosso escândalo ajudava os pobres de alguma forma. Hoje, esvaiu-se a idéia de revolução, de socialismo possível. Isso gerou um desalento que aos poucos dá lugar a um cinismo quase feliz. O fim das ilusões de que éramos úteis gera quase um alívio. Antes, podíamos nos indignar; as esmolas faziam mais bem a nós do que a eles. A miséria tinha uma “função social”. Hoje está fora de moda, a miséria não é mais um hype , a miséria está “enchendo o saco, não chove nem molha”. A gente esqueceu dos morros da população trabalhadora, com operários, domésticas, faxineiros; ela só aparece violenta, nas revoltas da Febem, nos tiros de bandidos. No Rio, sofro mais com a visão da miséria. Em São Paulo é menos visível: suas favelas são longe do Centro ou se escondem sob montes de lixo debaixo de viadutos. No Rio, temos de criar uma pele de rinoceronte para não sentir pena. Existe coisa mais triste do que menininhos de 6 anos fazendo malabarismo com bolinhas de tênis na chuva? Os miseráveis nos desgostam porque são a prova de nosso fracasso.

Sempre que os vejo, imagino como nos vêem. Assim como vemos a miséria, a miséria também nos vê. Nossa visão de mundo, as opiniões sobre o Brasil, a economia, a política, costumes, tudo é visto a partir de um olho de classe média ou de elite. Mas... e os outros pontos de vista? Como nos vê o menino que nasceu e logo foi posto junto aos canos de escapamento, cheirando fumaça para nos pedir esmola, como nos vêem os desvalidos?

Vêem-nos pelos fundos, nos vêem de baixo, nos vêem através de uma névoa de medo e fascinação, nos vêem habitando um mundo que não é deles. Diante de uma vitrine ele vê tudo que ele não terá. Todas as ofertas o ignoram, nada daquilo pode ser dele. Na TV, o miserável não se vê na tela, como nós nos vemos na novela. Ele só aparece como exceção, como absurdo, em matérias sociais. Diante da propaganda, ele tem a pavorosa sensação de não existir. Nós evitamos vê-los; eles nos vêem o tempo todo. Os miseráveis são nossa caricatura e damos esmola na esperança de uma salvação, mas os miseráveis não são generosos e não nos perdoam. Apenas um vago “Deus lhe pague”... Os miseráveis nos obrigam a uma contemplação interior que não desejamos. Os miseráveis nos devolvem suja qualquer esperança que temos de beleza. O miserável não é nem oprimido como os escravos; na escravidão, eles faziam parte da produção, o chicote e o pelourinho lhes davam uma espécie de “lugar social”. Hoje, são apenas ignorados.

De vez em quando, eles aparecem, em catástrofes — trens que descarrilham, barcos que afundam; vêmo-los como desastres naturais, como detritos de terremotos ou massacrados nos morros do Rio.

Hoje a miséria se recusa a sumir, ela desmoraliza a globalização, a democracia e o PT.

A miséria era o grande capital do governo Lula. O PT sempre teve ciúmes da miséria. Sempre que o FHC ou tucanos quiseram cuidar da miséria, o PT reagiu como um marido enganado. Mesmo o MST é um amante tolerado. Mas a miséria tem sido ingrata com o PT. Ela se recusa a comer do Fome Zero, ela desmoraliza a eficiência do Bolsa Família. A miséria não é dócil. A miséria se multiplica como amebas, ela não pára de crescer.

O erro dos que desejam acabar com a miséria, como o PT, é achar que ela está do “lado de fora” de nossa vida, do “lado de fora” dos aparelhos do Estado, de nossa vida social. A miséria não é um objeto, um fenômeno a ser resolvido lá fora, nos morros, na periferia... A miséria é a ponta suja de nossa miséria maior. Nós fazemos parte dela, a miséria anda para trás, contamina as causas com as conseqüências, a miséria está até na maneira como a vemos, o Brasil está contaminado de misérias, a miséria polui a água do rio que já passou, sobe rio acima. Não existe um mundo limpo e outro sujo. Um infecta o outro. A burocracia é miséria, nossa corrupção é miséria, a estupidez brasileira é miséria. A miséria mental já invadiu a Câmara dos Deputados. A miséria moral acaba de roubar 30 bilhões dos miseráveis. A miséria obriga o governo a alianças miseráveis. A revolta dos severinos é uma vingança da miséria.

A máquina está contaminada pelas misérias: a miséria moral, ideológica, a miséria corrupta. A miséria não está nas periferias e favelas; está no centro de nossa vida brasileira. Somos uns miseráveis cercados de miseráveis por todos os lados.