Preto, pobre e suburbano

Esse aqui é o cotidiano de um simples jornalista carioca que mora e circula pra cima e pra baixo na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Mas acaba sempre voltando pra a base, em Bangu - terra onde só os fortes sobrevivem pq é longe pra burro e tem que ter saco pra aturar as idas e vindas...

quarta-feira, julho 09, 2003

Olha aqui que ixpetáculo de seriedade no tratamento da informação

Acabo de ver no blog da Marinilda um post com esse texto, publicado no Observatório da Imprensa. Me dei a liberdade de publicá-lo. Pena não ter o e-mail do companheiro Vitor para dar-lhe os parabéns. De qq forma registro aplaudir de pé a seriedade com que lidou com esses dados.


JORNALISMO DE PRECISÃO
O Rio não é essa bandidagem toda

Vitor de Brites (*)

Taxa de homicídios de 35,5 pessoas a cada 100 mil habitantes não coloca o Rio entre os casos de violência urbana mais graves do país ou do mundo

Com um tanto de paranóia explorada pela mídia e um pouco da mania de se considerarem o espelho do que há de bom ou mal no país, os cariocas se auto-impuseram o título de capital brasileira do crime. Enquanto a prefeitura se defende atribuindo esse título a São Paulo (o que pouca gente leva a sério), a imprensa e a sociedade civil cuidam de exaltar o caos. Pelas lentes do exagero, os índices de criminalidade do Rio de Janeiro seriam dignos de um país em guerra civil, a morte estaria em cada esquina e não haveria lugar mais perigoso na face da terra. Só que, no momento, em todas as regiões do país, existem casos mais preocupantes. Casos que mostram tendência nacional para o aumento da criminalidade. O Rio de Janeiro é apenas uma das faces desse crescimento, não a maior, mas a mais visível e a mais amplamente proclamada.

Para ampliar a calamidade carioca, valeu tudo: comparar o índice de assassinatos das regiões mais violentas da baixada fluminense com os índices colombianos (sempre índices gerais do país, nunca das regiões mais conflituosas) e mostrar cada assalto ou índice de crescimento do tráfico como ameaça palpável à integridade física de todo morador. Mas, apesar de as pessoas associarem assaltos (entendidos como apropriação de bens, com ou sem violência) a casos de violência sexual ou morte, isso é raro. Em uma pesquisa para mapear a violência carioca coordenada pelo sociólogo Michel Misse para o movimento Viva Rio, o número de latrocínios ou estupros foi porcentagem mínima dos furtos e roubos que ocorreram em 2001.

Para ver como o caso carioca está longe de ser o mais preocupantes do país, comparam-se aqui estatísticas de diversas secretarias de segurança pública e do Ministério da Justiça sobre o Rio de Janeiro (35,5 homicídios p/ 100 mil habitantes) e outras capitais. Porto Velho, com 58,7 mortos para cada 100 mil habitantes, é a cidade mais perigosa do Norte, seguida de perto por Rio Branco. Como essas são cidades pequenas, no meio da Amazônia, é compreensível, embora não justificável, que sua situação seja ignorada no resto do país. A soma dos assassinatos nas duas capitais em um ano é de cerca de 300 pessoas, mas revela uma tendência preocupante para a região: desde 99 aumentaram os crimes em 53% em Porto Velho e 77% em Belém do Pará.

Passando para o Nordeste, Recife (49,6 homicídios p/ 100 mil hab.) também bate o Rio com facilidade – e já se trata de uma capital populosa e relevante. Ainda assim, somente seus moradores sabem o quanto a situação é grave.

Vitória (a campeã nacional, com 63,2) e São Paulo (49); têm recebido uma boa cobertura da mídia, mas nada comparado ao espaço que se dá aos "celsinhos da Vila Vintém" e "uês" da vida. E, mesmo no Sudeste, umbigo do Brasil, ninguém parece notar que a mudança mais importante na área de segurança está ocorrendo em Belo Horizonte. Lá, o número de assassinatos aumentou preocupantes 34,85% desde 1999. Se mantiver essa tendência deve ficar mais perigosa que o Rio em poucos anos. Isso tornaria (uai!) o Rio de Janeiro a capital mais segura da região Sudeste do Brasil – mesmo que os cariocas insistam em não acreditar nisso.

Não se está dizendo que a vida seja tranqüila em Copacabana, na Barra ou em Madureira: seria contrariar a realidade de modo grotesco. Mas deve-se levar em conta que, enquanto as balas perdidas, arrastões e guerras de tráfico cariocas são tratados como questão nacional (e são), casos bem piores pouco são conhecidos ou comentados. Ao mesmo tempo que essa percepção faz o poder público do Rio de Janeiro combater com mais intensidade o crime, gera pânico na cidade e impede que se tome consciência do que se passa no resto do país.

O número de homicídios no Rio de Janeiro está em declínio desde 1995. Houve apenas um pequeno e breve período de alta quando a governadora Benedita da Silva inaugurou uma política de confronto com o tráfico. As comparações em números absolutos com São Paulo chegam a ser humilhantes para os criminosos cariocas. Enquanto a equipe paulista de bandidagem mata mais de cinco mil pessoas por ano, no Rio morreram pouco mais de duas mil pessoas em 2002.

Os dados servem também como alerta aos que acreditavam que a situação não poderia ficar pior do que está. E não adiante culpar a polícia brasileira, a política econômica, a falta de presídios, chamar o Exército, a Marinha e a Aeronáutica A situação está pior em lugares em que a polícia é forte, a inflação importa pouco, mais de um por cento da população está encarcerada e a força armada é imbatível. É só ver que em Washington, capital dos Estados Unidos, o índice de assassinatos está próximo de 70 para cada 100 mil habitantes. Isso é mais do que o Rio, mais que São Paulo, mais que Vitória, nossa campeã. Até nisso os americanos estão à nossa frente.

Por que os cariocas acham que a violência é tão grande?

No mapa da violência desenhado pela pesquisa de Michel Misse, foram entrevistadas 2.759 pessoas no Grande Rio; cerca de dez por cento delas foram vítimas de furtos, roubos, agressões físicas em 2001. São perto de 1,2 milhões de casos de violência – na grande maioria, coisa pequena. Mas todos os 12 milhões de moradores do Rio estão assustados, achando que amanhã será a sua vez e que talvez não sobrevivam a isso. Misse afirma que a percepção da violência é muito maior do que a violência de fato. "Os números indicam que 90% dos habitantes do Grande Rio não foram assaltados ou furtados. No entanto, eles se comportam como se a probabilidade de serem assaltados fosse diária."

Na pesquisa, ainda foi perguntado se cada entrevistado tinha algum parente ou amigo muito próximo que tinha sido assassinado. O índice foi de cerca de 7,7%; a pergunta é a menos direta da pesquisa, pois alguém pode considerar um primo de segundo grau que mora na sua rua como parente próximo. Tomando, ainda assim, esses dados como reais e consistentes, 92% da população nunca tiveram ente querido assassinado, mas acreditam que isso pode acontecer a qualquer momento. O pavor que mudou os hábitos cariocas deve causar mudanças culturais e psicológicas a longo prazo, mas a população tem a perder de imediato com o excesso de cuidados. Entre as precauções que se deve tomar para evitar a violência, não figura certamente o medo de viver.

A histeria pode ser percebida melhor comparando jornais cariocas e paulistanos. Casos que em São Paulo ficariam restritos à página de polícia, no Rio de Janeiro ganham chamadas de capa. O que em São Paulo só interessa para o Cidade Alerta da TV, no Rio é tema a ser destrinchado por toda a imprensa. A segurança pública tornou-se assunto político tão importante que o ex-governador Anthony Garotinho assumiu a Secretaria de Segurança Pública e, com esse cargo, assegurou sua permanência na vitrina da mídia nacional até a próxima rodada de eleições majoritárias.

Talvez o fator psicológico mais importante pressionando os cariocas seja a proximidade entre os morros e os bairros de classe média. Protegido mesmo, apenas quem for rico o bastante para ter guardas de segurança (eis aí um bom negócio, que resiste a crises e se beneficia delas!), morar em fortalezas impenetráveis e dirigir carros blindados. Mesmo o extrato mais alto da classe média tem chance de estar entre os 7,5% de cariocas roubados ou furtados em 2001. A violência carioca parece incomodar mais na medida em que não são apenas os pobres que estão morrendo. É como se tudo estivesse melhor em São Paulo ou Porto Velho, simplesmente porque os ricos têm a ilusão de estar a salvo. Em Washington e Detroit (cidades americanas mais violentas que São Paulo) a criminalidade está quase inteiramente circunscrita aos bairros de negros e latinos. Em um país com desigualdades sociais tão grandes, os cariocas deveriam se orgulhar de ter a violência mais igualitária do mundo.

(*) Estudante de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina