O dia (ou a noite) em que ia faltar cerveja na favela
Violência urbana, azar, sorte e cerveja nessa história que me foi contada em primeira pessoa por um amigo, o folclórico Minduím.
Noite de semana. Ele voltava de viagem a trabalho e havia deixado seu carro na casa da irmã, ali perto do Centro. Saiu do aeroporto, buscou o veículo e partiu para Bangu. Já na Avenida Brasil, a maior via carioca, sentiu que o carro puxava para um dos lados e desconfiou: pneu furado. Ele é folclórico, mas não é maluco. Parou em um borracheiro para fazer o reparo e retomar o caminho em segurança.
O borracheiro ficava na entrada de uma das mais de dez favelas ali pelo Complexo da Maré, que margeia da avenida. Serviço feito, já dentro do carro para sair, hora do primeiro susto. Dois caras o renderam. Minduím se preocupou, voltava de trabalho, tinha informações importantes em um ‘pen-drive’ guardados no interior do veículo, fora notebook, pé-de-pato (ele nada fazendo travessias e tal). Tentou o desenrolo quando sofria o ganho, tentou conseguir seus arquivos de volta, mas o que conseguiu foi um botadão no rosto.
Os caras vazaram. Levaram o carro pela avenida à frente. Minduba (é um apelido a partir do apelido mesmo), ainda bolado, viu um carro da polícia militar e acenou. Pediu ajuda. Foi na viatura até um Posto de Policiamento Comunitário, também na beira da via, mas alguns quilômetros à frente. Falou pro “papa mike” de plantão o que tinha acontecido. Para sua surpresa, o tal “mike” avisou que sabia onde estava o carro: dentro da favela.
Ali em cima eu disse que Minduím era folclórico e não maluco. Corrijo. Ele é folclórico e maluco! Há poucos anos o camarada trabalhava na Ambev, era o fornecedor dos bares, botecos e similares da localidade, ou seja, era o cara que levava a cerveja pra comunidade. Apostou na capacidade do seu caô em recuperar o seu “pen-drive”. Foi lá na rua principal da comunidade, entrou num bar dum sujeito que o conhecia e pediu uma cerveja. Após algumas garrafas, já ambientado (ou seja, ligeiramente bêbado), mas ainda assustado, chorou e relatou a desventura ao dono do bar. Haviam levado seu carro com coisas importantes dentro.
O comerciante se condoeu. Já era tarde, mas o dono do bar pegou o telefone e ligou pra um sobrinho. Minduba não lembrava a hora, diz ele que já estava com a consciência devidamente enxaguada. E devia mesmo, porque seguia lá, atrás do que havia sido roubado. O sobrinho chegou e foi direto ao tio perguntar o porquê de tê-lo feito sair de casa naquela hora. O dono do boteco deixou claro o tamanho da crise: “vai faltar cerveja na favela!”. Não houve argumentação por parte do sobrinho. A situação era mesmo grave. Minduím retrucou dizendo que tinha deixado a Ambev? É ruim, hein.
O motivo do sobrinho ter sido convocado: tinha uma moto, sabia andar pela favela e por onde andava “o hômi”. Quem? O chefe da parada, o homem que mandava no movimento, no famigerado comércio ilegal de entorpecentes no local. Logo foi informado sobre a missão, questionou o tio, mas como a favela ia ficar ser cerveja? Saiu mais um tempo do bar deixou Minduba lá, enchendo o pote.
Voltou e partiram em busca do carro favela à dentro. O sobrinho pilotando e Minduím atrás, na garupa. Foram percorrendo ruas e vielas até chegar ao lugar onde estava o carro. A Pálio já estava no chão, já depenadinha. O sobrinho explicou o que acontecia e partiu um sujeito pra buscar o cara, digo, "o hômi". Esses caras geralmente não são encontrados nas favelas, eles que te encontram. Após instantes, contou Minduba, chegou “o hômi”. Fuzil cruzado nas costas e camisa da Torcida Jovem do Flamengo. Na hora em que contava, o amigo folclórico e maluco olhou pra mim e fez aquela cara de ironia ao dar o detalhe. Haha. Eu e ele costumamos ver os jogos na referida torcida do Flamengo, identificada maldosamente por muita gente como composta pessoas de má índole. Vejo bastante preconceito, até mesmo de flamenguistas nisso, mas... o pôste é sobre outra coisa...
O sobrinho deu logo o tamanho do problema. “Roubaram o carro do sujeito aqui. É o cara que traz a cerveja. Vai faltar cerveja na favela!”. Pois é, a essa hora já era verdade que ia faltar, quem ia acreditar que não ia? “O hômi” perguntou a Minduba quem tinha metido o carro. Ele apontou. O sobrinho contou que esculacharam meu amigo. “O hômi”, então, perguntou qual deles foi. Minduím apontou o malandro. Ah, aí a parada esquentou. O chefe do movimentou ordendou: “vai lá e dá na cara dele”. Meu amigo se negou. Se negou e ainda levou esporro: “tu não é homem? Vai lá e devolve o soco que tu levou”. É, né. A argumentação foi forte. Minduba, que já foi lutador e ainda é bem marrentinho, foi lá meio que forçado, meio que tremendo sobre as pernas e soltou o botadão nos cornos do sujeito.
A ordem era remontar o carro, recuperar os bens que estavam lá dentro na hora do roubo. “O hômi” perguntava o que estava lá, Minduba enumerava: notebook, pé-de-pato, “pen-drive”... Pen o quê? Lá foi ele explicar o que era aquilo. Justamente o menor dentre os objetos e o mais importante naquela hora. O carro foi sendo remontado, tudo foi sendo devolvido, até mesmo o notebook que já tava sendo usado por um dos camaradas ali na área do desmanche. “Cadê o pé-de-pato?”, perguntou o chefe? “Já botamos pra frente”, respondeu um dos caras. “O hômi” se virou pro Minduím e falou “vai lá, se adianta. Volta amanhã pra buscar teu pé-de-pato”.
Minduba, ainda mais folclórico, mas menos bêbado, pegou suas coisas, pegou seu carro e partiu. Tu voltou pra pegar o par de pés-de-pato? Nem ele.
Violência urbana, azar, sorte e cerveja nessa história que me foi contada em primeira pessoa por um amigo, o folclórico Minduím.
Noite de semana. Ele voltava de viagem a trabalho e havia deixado seu carro na casa da irmã, ali perto do Centro. Saiu do aeroporto, buscou o veículo e partiu para Bangu. Já na Avenida Brasil, a maior via carioca, sentiu que o carro puxava para um dos lados e desconfiou: pneu furado. Ele é folclórico, mas não é maluco. Parou em um borracheiro para fazer o reparo e retomar o caminho em segurança.
O borracheiro ficava na entrada de uma das mais de dez favelas ali pelo Complexo da Maré, que margeia da avenida. Serviço feito, já dentro do carro para sair, hora do primeiro susto. Dois caras o renderam. Minduím se preocupou, voltava de trabalho, tinha informações importantes em um ‘pen-drive’ guardados no interior do veículo, fora notebook, pé-de-pato (ele nada fazendo travessias e tal). Tentou o desenrolo quando sofria o ganho, tentou conseguir seus arquivos de volta, mas o que conseguiu foi um botadão no rosto.
Os caras vazaram. Levaram o carro pela avenida à frente. Minduba (é um apelido a partir do apelido mesmo), ainda bolado, viu um carro da polícia militar e acenou. Pediu ajuda. Foi na viatura até um Posto de Policiamento Comunitário, também na beira da via, mas alguns quilômetros à frente. Falou pro “papa mike” de plantão o que tinha acontecido. Para sua surpresa, o tal “mike” avisou que sabia onde estava o carro: dentro da favela.
Ali em cima eu disse que Minduím era folclórico e não maluco. Corrijo. Ele é folclórico e maluco! Há poucos anos o camarada trabalhava na Ambev, era o fornecedor dos bares, botecos e similares da localidade, ou seja, era o cara que levava a cerveja pra comunidade. Apostou na capacidade do seu caô em recuperar o seu “pen-drive”. Foi lá na rua principal da comunidade, entrou num bar dum sujeito que o conhecia e pediu uma cerveja. Após algumas garrafas, já ambientado (ou seja, ligeiramente bêbado), mas ainda assustado, chorou e relatou a desventura ao dono do bar. Haviam levado seu carro com coisas importantes dentro.
O comerciante se condoeu. Já era tarde, mas o dono do bar pegou o telefone e ligou pra um sobrinho. Minduba não lembrava a hora, diz ele que já estava com a consciência devidamente enxaguada. E devia mesmo, porque seguia lá, atrás do que havia sido roubado. O sobrinho chegou e foi direto ao tio perguntar o porquê de tê-lo feito sair de casa naquela hora. O dono do boteco deixou claro o tamanho da crise: “vai faltar cerveja na favela!”. Não houve argumentação por parte do sobrinho. A situação era mesmo grave. Minduím retrucou dizendo que tinha deixado a Ambev? É ruim, hein.
O motivo do sobrinho ter sido convocado: tinha uma moto, sabia andar pela favela e por onde andava “o hômi”. Quem? O chefe da parada, o homem que mandava no movimento, no famigerado comércio ilegal de entorpecentes no local. Logo foi informado sobre a missão, questionou o tio, mas como a favela ia ficar ser cerveja? Saiu mais um tempo do bar deixou Minduba lá, enchendo o pote.
Voltou e partiram em busca do carro favela à dentro. O sobrinho pilotando e Minduím atrás, na garupa. Foram percorrendo ruas e vielas até chegar ao lugar onde estava o carro. A Pálio já estava no chão, já depenadinha. O sobrinho explicou o que acontecia e partiu um sujeito pra buscar o cara, digo, "o hômi". Esses caras geralmente não são encontrados nas favelas, eles que te encontram. Após instantes, contou Minduba, chegou “o hômi”. Fuzil cruzado nas costas e camisa da Torcida Jovem do Flamengo. Na hora em que contava, o amigo folclórico e maluco olhou pra mim e fez aquela cara de ironia ao dar o detalhe. Haha. Eu e ele costumamos ver os jogos na referida torcida do Flamengo, identificada maldosamente por muita gente como composta pessoas de má índole. Vejo bastante preconceito, até mesmo de flamenguistas nisso, mas... o pôste é sobre outra coisa...
O sobrinho deu logo o tamanho do problema. “Roubaram o carro do sujeito aqui. É o cara que traz a cerveja. Vai faltar cerveja na favela!”. Pois é, a essa hora já era verdade que ia faltar, quem ia acreditar que não ia? “O hômi” perguntou a Minduba quem tinha metido o carro. Ele apontou. O sobrinho contou que esculacharam meu amigo. “O hômi”, então, perguntou qual deles foi. Minduím apontou o malandro. Ah, aí a parada esquentou. O chefe do movimentou ordendou: “vai lá e dá na cara dele”. Meu amigo se negou. Se negou e ainda levou esporro: “tu não é homem? Vai lá e devolve o soco que tu levou”. É, né. A argumentação foi forte. Minduba, que já foi lutador e ainda é bem marrentinho, foi lá meio que forçado, meio que tremendo sobre as pernas e soltou o botadão nos cornos do sujeito.
A ordem era remontar o carro, recuperar os bens que estavam lá dentro na hora do roubo. “O hômi” perguntava o que estava lá, Minduba enumerava: notebook, pé-de-pato, “pen-drive”... Pen o quê? Lá foi ele explicar o que era aquilo. Justamente o menor dentre os objetos e o mais importante naquela hora. O carro foi sendo remontado, tudo foi sendo devolvido, até mesmo o notebook que já tava sendo usado por um dos camaradas ali na área do desmanche. “Cadê o pé-de-pato?”, perguntou o chefe? “Já botamos pra frente”, respondeu um dos caras. “O hômi” se virou pro Minduím e falou “vai lá, se adianta. Volta amanhã pra buscar teu pé-de-pato”.
Minduba, ainda mais folclórico, mas menos bêbado, pegou suas coisas, pegou seu carro e partiu. Tu voltou pra pegar o par de pés-de-pato? Nem ele.
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