Preto, pobre e suburbano

Esse aqui é o cotidiano de um simples jornalista carioca que mora e circula pra cima e pra baixo na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Mas acaba sempre voltando pra a base, em Bangu - terra onde só os fortes sobrevivem pq é longe pra burro e tem que ter saco pra aturar as idas e vindas...

quarta-feira, outubro 22, 2003

O gari herói

Saiu ontem na coluna do Ancelmo e virou matéria hoje no Globo. Gilson, personagem do folclore virtual q lê essa coisa q chamo de blogue, falou da matéria. Fui lá e peguei.

Rio, 22 de outubro de 2003 Versão impressa


Gari intimida ladrões com marmita na Lagoa

Cesar Tartaglia

Um meio-campo que abandonou uma promissora carreira no futebol para ganhar a vida como pedreiro, Joaquim de Moura Poubel recuperou um pouco da fama que lhe escapou por baixo das pernas 20 anos atrás. De dentro de um ônibus, ele viu dois menores correndo com a bolsa da bancária Sandra Regina de Oliveira, na Lagoa. Desceu do veículo, perseguiu os ladrões, ameaçou-os com a marmita, tomou-lhes o butim e, ao restituir à vítima o que era dela, saboreou gostosos momentos do dever cumprido.

Mais oito quilos de patinho na geladeira

Joaquim, de 40 anos, ganha um salário bruto de R$ 380 para limpar a Praia de Copacabana como gari. Isto dá pouco mais de 50 quilos de patinho, a carne que só tem à mesa em início de mês, quando a materialização no bolso dos números do contracheque dá a falsa ilusão de que tudo é permitido. Ao devolver a bolsa, abriu o sorriso dos justos quando Sandra pregou-lhe R$ 50 nas mãos.

— Comprei tudo de carne — vibrava ontem Joaquim, elevado pelos colegas de trabalho à categoria de herói do Rio depois de ter sua história noticiada pelo jornalista Ancelmo Gois no GLOBO.

Tudo de carne, trocado em miúdos, significa uns oito quilos de patinho a mais na geladeira, o equivalente a seis meses de proteínas extras adicionadas às refeições da família.

Joaquim, juvenil do América e do Madureira, chegou a dividir as honras de craque do time com Jorginho, lateral tetracampeão do mundo. Sobre o episódio, lembra-se de tudo como se fosse ontem. Foi no dia 15, feriado escolar. Ele deixara o trabalho e, no meio da tarde, estava no ônibus de sempre, da linha 462 (Copacabana-São Cristóvão), no mesmo trânsito lento de todos os dias.

A cena que viu também não lhe era estranha: dois garotos, com cerca de 15 anos, tomaram a bolsa de uma mulher que, sentada, observava os filhos brincando na Lagoa, na altura da Curva do Calombo. Ela só teve tempo de gritar e voltar nervosa com as crianças para o carro. O ônibus andou alguns metros, o gari desceu e, como nos tempos de volante, barrou o caminho dos ladrões. Usou uma pequena esperteza para intimidá-los: puxou a mochila, deixou à mostra a ponta de um objeto de metal que guardava ali dentro e enfrentou os menores. Era sua marmita.

— Eu me virei como pude, né? Vi que eram garotos, então achei que não estariam armados. Mas, se fossem mais velhos, eu não ia dar uma de besta — disse Joaquim, que já foi vítima de assalto a mão armada, mas, como santo de casa não faz milagre, preferiu não reagir em causa própria.

Sandra, a vítima, já dera a bolsa como número de estatística. Perderia algum dinheiro e ganharia a dor de cabeça de tirar novos documentos, cancelar cartões de crédito e talões de cheques, desabilitar celular e outros problemas. Ficou o susto. Naquele momento, mesmo nervosa, tentava tranqüilizar os filhos Henrique, de 9 anos, e Beatriz, de 6, além da empregada Tuca.

Medo de levar uma bronca em casa

Como vítima que reconhece o papel do mocinho, fez a sua parte: na hora, ao recompensar Joaquim dando-lhe em dinheiro praticamente a metade do que ele ganha numa semana, e depois, procurando os chefes do gari na Comlurb, onde ele trabalha há dois anos e três meses, para relatar a proeza do funcionário. E voltou para casa meditando sobre a solidariedade humana.

— Ainda há muitas pessoas boas no mundo — afirmou.

Cinqüenta reais, tudo de carne. O super-Poubel, como foi chamado por Ancelmo Gois em sua nota, chegou naquele dia mais contente em casa. Como os filhos não estranharam a fartura de proteínas, Joaquim não se preocupou em contar-lhes sua epopéia de pai-herói. Guardou para si as honras devidas, mas não escondeu da mulher a aventura da tarde. Não por orgulho em demasia, mas por precaução:

— Cheguei em casa com um dinheiro a mais, já era meio de mês, como eu ia explicar para ela? Acabei contando, e vi que ela pareceu orgulhosa de mim. Bem, pelo menos me safei de levar uma bronca.