Preto, pobre e suburbano

Esse aqui é o cotidiano de um simples jornalista carioca que mora e circula pra cima e pra baixo na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Mas acaba sempre voltando pra a base, em Bangu - terra onde só os fortes sobrevivem pq é longe pra burro e tem que ter saco pra aturar as idas e vindas...

quarta-feira, julho 19, 2006

Carioca de almanaque

Camarada Filipe, que carinhosamente chamamos de "O Argentino", embora tenha apenas mãe chilena, pôs na cabeça que sou um carioca “bandeirola”. Pois bem, ele desencavou o texto de Paulo Roberto Pires publicado já há algum tempo no Nomínimo supostamente para ilustrar minha natureza “bandeirola”. Ou, como disse Paulo Roberto Pires, um “Carioca de Almanaque”. Peguei o texto e fui rebatendo ponto a ponto. Ufa, por um instante cheguei a duvidar de mim mesmo, mas me saí bem.

Na realidade um ponto da lista abaixo foi direto ao ponto quando se fala em Vicente: o item III quando diz que “O carioca de almanaque freqüenta o Centro histórico com ares de reverência”, sim, faço isso. Mas o resto do item não bate comigo. Os demais não funcionaram diante da minha alma suburbana que gosta de circular e viver a cidade (até mesmo a zona sul, mesmo com meu clássico bico pra esse pedaço do Rio).

"O Argentino" se rendeu à minha fanfarronice e viu q existe até um fundo de verdade na minha carioquice.

05/12/2004
Está cada vez mais chato ser carioca
De Paulo Roberto Pires/nominimo


Está cada vez mais chato ser carioca. Mais chato e trabalhoso depois que a cidade foi invadida pelos "cariocas de almanaque". Eles até podem vir de fora, mas em geral nasceram e vivem por aqui mesmo e decidiram, de um tempo para cá, que há um jeito cariocamente correto de se comportar que dá nos nervos de quem sempre cultivou esta cidade como um lugar de descompromisso e mistura, antídoto contra maltratos de governo, prefeitura, traficantes, polícia e árvore de Natal da Lagoa. Seguem os dez mandamentos desta nova cartilha, chaaaaata toda vida:

I – Para o carioca de almanaque, o melhor já passou. Sua palavra-chave é "revitalização" – do Centro da cidade, do botequim, do samba, do jongo e do carnaval – e seu principal objetivo é a busca de vestígios deste passado. Como Prousts de terreno baldio, saem por aí chamando bolinho de bacalhau de madeleine e mostrando o melhor caminho para o "legítimo", do chope ao alfaiate.

II - O carioca de almanaque nasce do amor dos cariocas pela cidade, mas repete a História como farsa. Para ele, o samba é o único horizonte de carioquismo. Torcem boquinha de nojo para o funk, deploram o samba-mauriçola e ignoram o mela-cueca dos happy hours do Centro da cidade, animados a teclado de contrabando. Como nas chanchadas da Atlântida ou no "Orfeu negro", o carioca é bicho que canta e dança (samba!) o ano inteiro.

III – O carioca de almanaque freqüenta o Centro histórico com ares de reverência. Está atrás de preciosidades da arquitetura eclética (êpa) e de "centros culturais". Adora um debate, persegue a tal da "vocação cultural" da cidade e adoraria morar num imóvel-revitalizado-do-corredor-cultural (ôpa).

IV – O carioca de almanaque é chegado a um extremo. Toma chope no Leblon cantando as maravilhas do mocotó de Senador Camará, vai a Campo Grande tomar caldinho de feijão e jura que conhece um tão bom no Centro. Na sua cidade não existem Bonsucesso ou Todos os Santos, bairros com baixíssimos teores de carioquismo correto.

V – Como adora uma tradição, o carioca de almanaque gosta de ir a uma roda de choro. E o faz contrito, como se fosse à missa. Valei-me São Jacob, a bênção meu Pixinguinha! Alegria, só se for sob controle: nada de falar alto ou dançar enquanto tocam. É preciso estar quieto e comportado para ouvir o ritmo "original", em geral também executado por cidadãos sérios e tristonhos.

VI – Num sábado de calor escaldante, o carioca de almanaque vai a Madureira para a feijoada da Portela. Lá é possível ouvir a Velha Guarda – outro fetiche recorrente – e se confraternizar com uma "comunidade" cariocamente correta. É imprescindível também ter alguém para chamar de "tia" e mostrar a intimidade com este Rio de Janeiro profundo.

VII – No bar, o carioca de almanaque já ocupou todos os espaços. Tem decorado o guia "Rio Botequim" e segue-o como a uma Bíblia, transformando em obrigação o que é para ser apenas sugestão. Tornou-se connaisseur de chope e gourmet de tira-gosto. Não come provolone aperitivo ou batata frita, o importante é testar os pratos mais exóticos e, também, chamar os garçons pelo nome – mesmo que Edílson vire Ivan e Ramos, Manoel.

VIII – O carnaval é a alta temporada do carioca de almanaque. Na temporada do "esquenta" todos acham o ensaio da Mangueira um horror (principalmente por sua organização e pela densidade de gringos) e, a cada ano, elegem a escola de samba que está revitalizando alguma coisa – também serve algum tipo de "resgate", outra das palavras mágicas.

IX – No carnaval cariocamente correto não pode haver multidão. A cada novo bloco que surge, ouve-se a frase: "Encheu demais, estragou". Pois, é claro, só poucos leram o almanaque e sabem inteirinha a letra de "Tatu subiu no pau" ou como dançar corretamente marchinhas e maracatus.

X – No fundo, o carioca de almanaque detesta a espontaneidade e a alegria. Por isso as transforma em obrigação e militância. Assim, aos poucos, vai matando o carioca que sobrevive, esquálido, ente um clichê e outro.